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    O Crime do Padre Amaro

    Por José Maria de Eça de Queirós
    Existem 5 citações disponíveis para O Crime do Padre Amaro

    Sobre

    O Crime do Padre Amaro é uma das obras do escritor português Eça de Queirós mais difundidas por todo o mundo. Trata-se de uma obra polêmica, que causou protestos da Igreja Católica, ao ser publicada em 1875, em Portugal. Também um documento humano e social do país e da sua época escrito com a maestria do autor. É ainda a primeira realização artística do realismo português.
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    Citações de O Crime do Padre Amaro

    Abominava então todo o mundo secular — por lhe ter perdido para sempre os privilégios: e como o sacerdócio o excluía da participação nos prazeres humanos e sociais, refugiava-se, em compensação, na ideia da superioridade espiritual que lhe dava sobre os homens. Aquele miserável escrevente podia casar e possuir a rapariga — mas que era ele em comparação dum pároco a quem Deus conferia o poder supremo de distribuir o Céu e o Inferno?… — E repastava-se deste sentimento, enchendo o espírito de orgulhos sacerdotais. Mas vinha-lhe bem depressa a desconsoladora ideia que esse domínio só era válido na região abstrata das almas; nunca o poderia manifestar, por atos triunfantes, em plena sociedade. Era um Deus dentro da Sé — mas apenas saía para o largo, era apenas um plebeu obscuro. Um mundo irreligioso reduzira toda a ação sacerdotal a uma mesquinha influência sobre almas de beatas… E era isto que lamentava, esta diminuição social da Igreja, esta mutilação do poder eclesiástico, limitado ao espiritual, sem direito sobre o corpo, a vida e a riqueza dos homens… O que lhe faltava era a autoridade dos tempos em que a Igreja era a nação e o pároco dono temporal do rebanho. Que lhe importava, no seu caso, o direito místico de abrir ou fechar as portas do Céu? O que ele queria era o velho direito de abrir ou fechar a porta das masmorras! Necessitava que os escreventes e as Amélias tremessem da sombra da sua batina… Desejaria ser um sacerdote da antiga Igreja, gozar das vantagens que dá a denúncia e dos terrores que inspira o carrasco, e ali naquela vila, sob a jurisdição da sua Sé, fazer estremecer, à ideia de castigos torturantes, aqueles que aspirassem a realizar felicidades — que lhe eram a ele interditas; e pensando em João Eduardo e em Amélia; lamentava não poder acender as fogueiras da Inquisição! — Assim aquele inofensivo moço tinha durante horas, sob a excitação colérica duma paixão contrariada, ambições grandiosas de tirania católi

    Mas escuta. Olha que isso às vezes não é paixão, não está no coração… O coração é ordinariamente um termo de que nos servimos, por decência, para designar outro órgão. É precisamente esse órgão o único que está interessado, a maior parte das vezes, em questões de sentimento. E nesses casos o desgosto não dura.

    Que o Céu também é para os ricos. A senhora não compreende o preceito Beati pauperes, benditos os pobres, quer dizer que os pobres devem-se achar felizes na pobreza; não desejarem os bens dos ricos; não quererem mais que o bocado de pão que têm; não aspirarem a participar das riquezas dos outros, sob pena de não serem benditos. É por isso, saiba a senhora, que essa canalha que prega que os trabalhadores e as classes baixas devem viver melhor do que vivem, vai de encontro à expressa vontade da Igreja e de Nosso Senhor, e não merece senão chicote, como excomungados que são! Ouf!

    Abades, cônegos, cardeais e monsenhores não pecavam sobre a palha da estrebaria, não — era em alcovas cômodas, com a ceia ao lado. E as igrejas não se aluíam, e S. Miguel Vingador não abandonava por tão pouco os confortos do Céu!

    E esta ideia absurda, na exaltação da febre em que estava, apoderou-se tão fortemente da sua imaginação que toda a noite a sonhou — num sonho vívido, que muitas vezes depois contou rindo às senhoras. Era uma rua estreita batida dum sol ardente; entre as altas portas chapeadas, uma populaça apinhava-se; pelos balcões, fidalgos muito bordados retorciam o bigode cavalheiresco; olhos reluziam, entre as pregas das mantilhas, acesos num furor santo. E pela calçada, a procissão do auto-de-fé movia-se devagar, num vasto ruído, sob o tremendo dobre a finados de todos os sinos vizinhos. Adiante os flagelantes seminus, de capuz branco sobre o rosto, dilaceravam-se, uivando o Miserere, com as costas empastadas de sangue: sobre um jumento ia João Eduardo, idiota de terror, com as pernas pendentes, a camisa alva sarapintada de diabos cor de fogo, tendo no peito um rótulo em que estava escrito — POR HEREGE; por trás um medonho servente do Santo Ofício espicaçava furiosamente o jumento; e ao pé um padre, erguendo alto o crucifixo, berrava-lhe aos ouvidos os conselhos do arrependimento. E ele, Amaro, caminhava ao lado cantando o Réquiem, de breviário aberto numa mão, com a outra abençoando as velhas, as amigas da Rua da Misericórdia que se agachavam para lhe beijar a alva. Às vezes voltava-se para gozar aquela pompa lúgubre, e via então a longa fila da confraria dos Nobres: aqui era um personagem pançudo e apoplético, além uma face de místico com um bigode feroz e dois olhos chamejantes; cada um levava uma tocha acesa, e na outra mão sustentava o chapéu cuja pluma negra varria o chão. Os capacetes dos arcabuzeiros reluziam; uma cólera devota contorcia as faces esfomeadas do populacho; e o préstito ondeava nas tortuosidades da rua, entre o clamor do cantochão, os gritos dos fanáticos, o dobrar aterrador dos sinos, o tlintlim das armas, num terror que enchia toda a cidade, — aproximando-se da plataforma de tijolo onde já fumegavam as pilhas de lenha.

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