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    Os inimigos íntimos da democracia

    Por TODOROV, TZVETAN
    Existem 13 citações disponíveis para Os inimigos íntimos da democracia

    Sobre

    Em 2003, a invasão do Iraque pelas forças armadas norte-americanas e a consequente deposição do regime de Saddam Hussein foram baseadas num jogo de mentiras e meias verdades que estarreceu o mundo. As armas de destruição em massa supostamente à disposição do Exército iraquiano jamais foram encontradas, e desde então tem sido quase impossível justificar essa desastrosa intervenção militar sem admitir que os interesses da indústria do petróleo sempre estiveram por trás do discurso pró-democracia evocado pela coalizão ocidental. Do mesmo modo, em nome de valores universalmente reconhecidos como autodeterminação dos povos e direitos humanos, os bombardeios da OTAN que se seguiram à recente revolução popular na Líbia reeditam os piores episódios do imperialismo europeu no século XIX. Segundo Tzvetan Todorov, esses são apenas alguns dos exemplos que evidenciam a assustadora corrosão da democracia no mundo contemporâneo. A cidadania encontra-se cada vez mais ameaçada pela perigosa combinação entre o cinismo dos políticos tradicionais, indiferentes aos verdadeiros anseios da sociedade, e a ascensão de movimentos populistas à direita e à esquerda. Consagrado por sua influente produção intelectual como historiador, crítico literário e linguista, em seu mais recente livro Todorov intervém com lucidez no debate público sobre a sobrevivência da democracia no século XXI, emitindo um eloquente alerta sobre a sorrateira supressão das liberdades engendrada por governos, mídias e corporações.
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    Citações de Os inimigos íntimos da democracia

    O primeiro adversário da democracia é a simplificação que reduz o plural ao único, abrindo assim o caminho para o descomedimento.

    “Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o patrão e o servo, o que escraviza é a liberdade, o que alforria é a lei”.

    A tarefa da política é reconciliar os interesses divergentes dos diferentes elementos da sociedade, propondo compromissos razoáveis para uns e para outros; seus objetivos são relativos, não absolutos.

    Como todos os messianismos, o comunismo defenderá a ideia de que a história possui uma direção preestabelecida e imutável; ele encontrará nisso a legitimação de sua ação.

    O povo, a liberdade, o progresso são elementos constitutivos da democracia; mas se um deles se emancipa de suas relações com os outros, escapando assim a qualquer tentativa de limitação e erigindo-se em único e absoluto, eles transformam-se em ameaças: populismo, ultraliberalismo, messianismo, enfim, esses inimigos íntimos da democracia.

    A democracia se caracteriza não só por um modo de instituição do poder ou pela finalidade de sua ação, mas também pela maneira como o poder é exercido. A palavra-chave aqui é pluralismo, pois se considera que os poderes, por mais legítimos que sejam, não devem ser todos confiados às mesmas pessoas nem concentrados nas mesmas instituições. É essencial que o Poder Judiciário não seja submetido ao poder político (no qual estão reunidos o Executivo e o Legislativo) e possa fazer julgamentos com total independência. O mesmo se dá quanto ao poder midiático, o mais recente, que não deve ser posto a serviço do governo, mas permanecer ele mesmo plural.

    Ao privar seus cidadãos de toda autonomia econômica, o Estado totalitário os condena à escravidão política. Hayek se empenha então em mostrar por que tal opção econômica conduziria inevitavelmente ao desastre, inclusive numa democracia. Essa crítica ao totalitarismo é justa e necessária. No entanto, observando-se os diferentes elementos da doutrina neoliberal, somos levados a perguntar-nos se a oposição entre esses dois modelos de governo é sempre tão completa quanto acreditam os que a formulam. “Cada uma à sua maneira, a ideologia comunista e a doutrina que a ela se opõe são tributárias do mito prometeico”, escreve Flahault em seu estudo desse mito;12 tributária também, poderíamos acrescentar, da herança de Pelágio. Vários comentaristas já insistiram quanto à singular concepção da história que constitui a base das doutrinas neoliberais. Como vimos a respeito de Bastiat, elas postulam que, se os homens simplesmente não se metessem a impedir o curso natural das coisas com seus projetos e seus planos, tudo iria da melhor maneira no melhor dos mundos. Esse curso natural consiste na ausência de todo obstáculo erguido ante a livre concorrência, e portanto de toda intervenção estatal para corrigir os eventuais efeitos indesejáveis dela. “Foi a submissão do homem às forças impessoais do mercado que, no passado, possibilitou o desenvolvimento de uma civilização”, escreve Hayek.13 Dir-se-ia que, tal como Deus, o mercado não pode agir mal. Desse ponto de vista, o neoliberalismo, que apresenta seus objetivos como inteiramente “naturais”, não se opõe de fato à teoria comunista, cujas “proposições teóricas” são supostamente, como vimos, “a expressão geral de relações efetivas”. E, visto que o homem obedece às leis da natureza, basta conhecê-las para saber em que direção seguir. Ao “socialismo científico” de Marx e Engels vem, portanto, acrescentar-se o liberalismo “científico”: os dois compartilham as mesmas premissas cientificistas.

    Foi no século xviii que se produziu aquilo que Louis Dumont denomina “uma inovação sem precedentes: a separação radical dos aspectos econômicos do tecido social e sua construção em um domínio autônomo”.3 Essa separação encontra seu acabamento em A riqueza das nações, de Adam Smith (1776), mas foi preparada pelos trabalhos de numerosos estudiosos e filósofos.

    Essa combinação entre a fé cega nas leis da natureza e a história, com a convicção de que é possível atingir todos os objetivos fixados, é característica do cientificismo, comum aos comunistas e aos neoliberais: uma vez que a ciência pode conhecer tudo, a técnica pode fazer tudo. A remodelagem da sociedade é um problema técnico entre outros.

    A liberdade que as galinhas têm de atacar a raposa é uma piada, pois elas não têm capacidade para isso; a liberdade da raposa é perigosa porque ela é a mais forte. Através das leis e das normas que estabelece, o povo soberano tem de fato o direito de restringir a liberdade de todos, porque ela pode tornar-se uma ameaça. A tirania dos indivíduos é certamente menos sanguinária do que a dos Estados; mas é também um obstáculo a uma vida comum satisfatória. Nada nos obriga a limitar-nos à escolha entre “o Estado é tudo” e “o indivíduo é tudo”: precisamos defender os dois, Estado e indivíduo, cada um limitando os abusos do outro.

    No entanto, os órgãos de informação não exprimem a vontade coletiva, e ainda bem: o indivíduo deve poder julgar por si mesmo, e não sob a pressão de decisões provenientes do Estado. Só que, nas atuais circunstâncias, ele corre o risco de receber uma informação tão uniformizada quanto se proviesse do Estado, mas decidida por um só indivíduo, ou por um grupo de indivíduos. Hoje, é possível — se a pessoa tiver muito dinheiro — comprar uma emissora de tevê, ou cinco, ou dez, mais estações de rádio, mais jornais, e fazer todas essas mídias dizerem o que se deseja, para que, por sua vez, os consumidores, leitores, ouvintes e espectadores pensem o que se espera que eles pensem.

    Ora, a liberdade absoluta dos indivíduos não é um objetivo desejável; é próprio das sociedades humanas constituírem-se a partir de proibições e de regras que organizam a vida comum. O aspecto compartilhado por todas essas derivas é que elas não provêm de ataques vindos de fora, mas dos princípios internos à própria democracia. Como disse o diretor Stanley Kubrick na época em que realizava seu filme Nascido para matar (1987), ao descrever a preparação dos marines antes que partissem para combater no Vietnã: “Nós encontramos o inimigo, e somos nós”.

    A esquerda é favorável à livre circulação de pessoas; a direita, à dos capitais.

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